Por Inês Thomas Almeida

(O texto não utiliza o acordo ortográfico de 1990.)

 

1. CRITÉRIOS GERAIS

Uma transcrição musical, como uma tradução, por mais fiel ao original que pretenda ser, é sempre uma interpretação. Cabe ao transcritor definir a latitude dessa interpretação.

Sendo o objectivo do catálogo RELIT-Rom disponibilizar informação, sem almejar ser uma edição crítica do repertório musical dos livros de vihuela e dos cancioneiros de música, tentou-se reduzir ao mínimo o âmbito dessa interpretação.

De forma geral, o critério utilizado no presente catálogo para a realização de transcrições em notação moderna é o de menor interferência possível em relação ao original.

Não são feitas correcções às notas escritas, excepto em casos pontuais devidamente assinalados, como sucede em La mañana de ſant Iuan de Diego Pisador, na qual foi necessário, por questões de prosódia, assumir como fazendo parte da melodia notas que não estão explicitamente assinaladas como tal, ou como em Amor por quien yo padezco, do Cancioneiro musical de Palacio, em que foi necessário corrigir a duração de uma nota, que de outra forma traria erros e incongruências rítmicas, melódicas e harmónicas. 

A colocação silábica obedece também, tanto quanto possível, à mancha gráfica do fac-símile, mesmo que daí resultem acentuações menos comuns.

São utilizados os valores rítmicos indicados no original. A transcrição dos textos segue os critérios do catálogo filológico.

A altura dos sons obedece rigorosamente ao texto musical, de acordo com as especificidades do respectivo sistema de escrita de que aqui se apontam as ideias principais, relevantes para as transcrições efectuadas.

 

2. LIVROS DE VIHUELA

As peças musicais dos livros de vihuela estão grafadas seguindo diferentes sistemas, descritos nos respectivos prefácios e bem sumarizados, para a nossa compreensão moderna, por G. Morphy, em Les luthistes espagnols du XVIe siècle (1902).

Milán, Narváez, Valderrábano, Pisador e Fuenllana utilizam a tablatura: um sistema de notação direccionado para a execução prática das peças na vihuela e que indica, por meio de linhas, as diferentes cordas do instrumento, e por meio de números, os trastes correspondentes que devem ser premidos para se obter o som pretendido. No sistema adoptado e desenvolvido por estes cinco vihuelistas, a melodia da voz é escrita a vermelho, para que se distinga das notas do acompanhamento.

Mateo Flecha "el joven" utiliza o pentagrama, no qual está indicada directamente a altura e a duração dos sons, de forma semelhante ao nosso sistema actual. Juan de Bermudo utiliza um sistema híbrido, com a tablatura para a realização instrumental e o pentagrama para a realização vocal, sucedendo o mesmo com Diego Pisador em Paſſeauaſe el rey moro.

A maior parte das peças está escrita para vihuela de seis ordens. As cordas da vihuela estão afinadas, assim nos dizem os vihuelistas, de acordo com relações intervalares precisas:

4ª perfeita – 4ª perfeita – 3ª maior – 4ª perfeita – 4ª perfeita

 

Figura 1: Luis Milán, Libro de mvsica de vihuela de mano. Intitulado El maestro, 1536.

 

Para Milán, a primeira corda da vihuela (correspondente ao som mais agudo) está na linha de cima da tablatura. Para Diego Pisador, Enriquez de Valderrábano e Miguel de Fuenllana, a primeira corda da vihuela (correspondente ao som mais agudo) está na linha de baixo da tablatura.

Figura 2: ordem das cordas em Luis Milán e em Luys de Narváez, respectivamente.

 

Para saber qual a nota em que se começa a afinar a vihuela, os autores de música dão muitas vezes indicações precisas, assinalando em que corda se encontra determinada nota dó, fá ou sol, e qual o traste que deve ser premido nessa corda por forma a obtê-la. Cada traste faz a nota da corda solta ascender por meio tom, e caso se pretenda a nota correspondente à corda solta, o algarismo apresentado será o zero.

Quanto aos valores rítmicos, estão escritos na parte de cima da tablatura. Pisador, Fuenllana e Valderrábano assinalam o valor rítmico apenas quando há uma mudança: não havendo variação no valor rítmico, vai-se repetindo a duração indicada pela última vez. Pelo contrário, Luis Milán escreve o valor rítmico para cada nota.

Em termos de métrica, por uma questão de legibilidade da transcrição, e também de aproximação ao texto original, são colocadas na transcrição barras verticais, ressalvando, porém, a necessária diferença entre o tactus renascentista (que dá uma noção de pulsação) e o moderno compasso (que inclui uma hierarquização entre tempos fortes e fracos, resultando numa acentuação que não ocorre na prática musical em estudo).

Dos vários tipos de afinação da vihuela conhecidos no repertório quinhentista, encontramos, nas versões musicadas dos romances apresentadas neste catálogo, os quatro seguintes:[1]

SOL MI

 

O livro de vihuela de Luis Milán, apesar de descrever em detalhe o sistema de execução musical, não dá qualquer indicação quanto à vihuela utilizada em cada peça. Fica a cargo do intérprete escolher qual é a nota absoluta em que quer começar, mantendo as relações intervalares descritas, o que exige um grau de intervenção maior por parte de quem lê a pauta. Na transcrição realizada neste catálogo, optou-se por considerar a vihuela mais comum, que é a vihuela em lá, a exemplo do que sugere Morphy.

Uma vez identificada a vihuela, procede-se à correspondência dos algarismos com as notas.

Exemplo:

Figura 3: Excerto inicial de Paſſeuaſe el Rey moro, de Luys de Narváez

 

Narváez indica que "En la quinta em el tercero traste esta la claue de fefaut". Ou seja: na quinta corda, o terceiro traste dá a clave de F-faut, que é a nota fá. Isso significa que essa corda tem de ser a corda ré (pois premindo o segundo traste ela aumentará por dois meios-tons e chegará então à nota fá). Para que não haja dúvidas, acrescenta que no primeiro traste da terceira corda está a clave de c-solfaut, ou seja, a nota dó, pelo que essa segunda corda tem de ser a corda si (e assim, premindo o primeiro traste, ou seja, acrescentando mais meio tom à corda solta, obtemos a nota dó). A afinação em que a quinta corda é ré e a terceira si é a da vihuela em lá. Através destas indicações, ficamos então a saber estarmos perante a vihuela em lá, com as seguintes cordas, do grave para o agudo: lá-ré-sol-si-mi-lá.

Quanto aos valores rítmicos, temos as proporções escritas sempre que há variação, e cada nota prolonga-se durante tanto tempo quanto o indicado pelo valor ou soma dos valores escritos. Assim, neste exemplo começamos com a figura da mínima, que no início do compasso seguinte muda para semibreve na sílaba “a“ (por durar tanto quanto as quatro semínimas indicadas) e se prolonga no compasso seguinte por mais uma mínima, mudando na sílaba “-va” para outra mínima sobre a nota sol.

Tendo tudo isto em conta, a transcrição moderna da melodia seria:

 

 

Um caso particular nos livros de música para vihuela utilizados neste catálogo é o sistema de Luis Venegas de Henestrosa. Em vez de colocar números que representam os trastes a serem premidos em cada corda, usa o que diz ser uma invenção sua: primeiro, escreve tantas linhas quantas as vozes usadas na peça. Segundo, escreve o grau de cada nota em função da clave, fazendo corresponder às sete primeiras notas de cada modo os sete primeiros algarismos da numeração árabe. Henestrosa especifica que, salvo indicação em contrário, o número 1 corresponde ao fá ("el vno graue comiença quatro eſpacios abaxo dela claue de ffaut"). Assim, o 1 é a nota fá, o 2 é sol, o 3 é lá, etc. Quando há mudança de oitava, acrescenta um sinal ao algarismo: um ponto se for a oitava superior, uma linha se for a oitava inferior. Assim, por exemplo, se na linha estiver indicado um 5, será a nota dó; mas se estiver indicado um 5., tratar-se-á do dó uma oitava acima. No caso de haver cromatismos, são indicados por meio de um bemol (b).

 

Figura 4: correspondência, segundo Henestrosa, dos algarismos com a altura dos sons.

 

Em relação ao ritmo, Henestrosa divide cada compasso em quatro partes, ou quatro casas, correspondentes à semínima. Os números estão escritos consoante a sua duração: se um número ocupa apenas uma casa, tem a duração de uma semínima. No caso de o valor rítmico ser prolongado, o próximo algarismo só é escrito passado o valor rítmico correspondente (se tiver a duração de mínima, depois do algarismo haverá um espaço em branco). No caso de o valor rítmico ser mais curto do que a casa, escreve-se na partitura o valor rítmico menor (por exemplo, colcheia) que corresponde a esse trecho.

Por exemplo, nestes dois compassos:   A transcrição moderna seria:
 

 

A aplicação dos princípios aqui descritos, relativos aos vários sistemas de notação utilizados nos livros de vihuela do presente catálogo, coloca questões de ordem prática em várias passagens, nas quais é exigida tomada de decisões. Todas as escolhas e casos particulares estão assinaladas neste catálogo no campo Observações.

Em caso de dúvida, prevalece o critério geral de menor modificação possível do texto original.

 

[1] Existem mais tipos comuns de afinação da vihuela, nomeadamente a vihuela em fá e em fá #, mas que estão aplicados a outro tipo de peças musicais que não figuram neste catálogo.

 

3. CANCIONEIROS

 

O sistema de escrita utilizado nos Cancioneiros espelha a prática de escrita vocal renascentista, em que a linha melódica está escrita num pentagrama com notação mensural branca.

É característico da época, nas peças polifónicas, as vozes estarem escritas de forma independente, por vezes em páginas diferentes. Na presente transcrição, de acordo com a prática musical moderna todas as vozes referentes a uma mesma peça são colocadas em alinhamento vertical, seguindo a ordem da voz mais aguda em cima até à mais grave em baixo, independentemente do lugar do fólio em que essa voz ocorra.

 

 

Figura 5: Señoꝛa ꝺe hermoſura, de Juan del Encina, no Cancioneiro de Palacio. Disposição no fólio e na transcrição.

 

Em termos métricos, nesta transcrição usa-se pequenas barras verticais na linha superior, que assinalam o tactus, prescindindo também de ligaduras. Este é um compromisso para facilitar a leitura das vozes, sem, contudo, transformar o tactus num moderno compasso (que inclui uma hierarquização interna entre tempos fortes e tempos fracos, alheia à prática musical da época) e preservar ou alertar para as questões de irregularidade rítmica próprias da interpretação da música renascentista, e que extravasam o âmbito deste catálogo.

São transcritas na íntegra as barras verticais completas, simples ou duplas, sempre que elas ocorram no texto original.

 

Figura 6: Mis arreos som las armas, do Cancioneiro de Paris. Detalhe do fac-símile e da transcrição.

 

Como é característico dos cancioneiros quinhentistas, a colocação das sílabas no fólio não está necessariamente alinhada com a sucessão de notas musicais na pauta. Por vezes, no texto original há alguma indicação de correspondência, como por exemplo pelo uso de barras verticais completas, assinalando o fim de cada verso, ou no caso de peças muito silábicas em que o número de notas corresponde sensivelmente ao número de sílabas. Nos casos em que não é possível aferir com clareza a colocação do texto, procurou-se neste catálogo, e de acordo com as regras de menor interferência possível, fazer essa correspondência, forçosamente subjectiva, seguindo a prosódia e o desenho rítmico e melódico apresentado. 

A altura absoluta dos sons podia não corresponder, como é comum neste repertório, à altura a que eles eram cantados, sendo a escolha das claves feita pelos músicos e copistas da época segundo o critério de evitar a necessidade de linhas suplementares. No presente catálogo, foram transcritas de forma rigorosa as alturas indicadas no manuscrito, deixando a cargo dos intérpretes a possibilidade de fazerem, ou não, transposições.

São indicados na transcrição apenas e só os acidentes que estão efectivamente escritos no texto original. É excluída desta transcrição a sugestão de musica ficta, ou seja, de acidentes cromáticos que não estão escritos, ainda que daí resultem dissonâncias que contradigam as regras teóricas e/ou a prática da época.

Tal como sucede com os livros de vihuela, também na transcrição dos cancioneiros são utilizados os valores rítmicos indicados, mesmo que pareçam, aos nossos olhos e ouvidos hodiernos, demasiado longos e resultando em notas demasiado brancas.

Sempre que a aplicação dos princípios aqui descritos exija a tomada de decisões, as escolhas e casos particulares estão assinalados neste catálogo no campo Observações.

Em caso de dúvida, prevalece o critério geral de menor modificação possível do texto original.